uma situação puramente hipotética

Vamos supor que há uma pessoa, e que essa pessoa, como qualquer cidadão português, tem de tratar de uma série de burocracias necessárias ao normal decurso da sua vida profissional e não só. Digamos que essa pessoa tem que renovar o Bilhete de Identidade e resolver alguns assuntos na Segurança Social. Ora, como esta pessoa é uma criatura prática, a bem da celeridade com que serão resolvidas as suas pendências, resolve tratar de tudo num só local, e dirige-se, para esse efeito, a uma dessas maravilhosas invenções do estado português que dão pelo nome de Lojas do Cidadão. Digamos que essa pessoa se dirigiu à Loja do Cidadão das Laranjeiras.
Suponhamos que essa pessoa, no fundo, no fundo, é uma criatura ingénua e de boa índole, que acredita que conseguirá resolver todos os seus assuntos durante a manhã, o que lhe dará tempo para, no remanescente do dia, se dirigir ao seu local de trabalho, onde ainda poderá fazer algo realmente produtivo.

O cenário está montado, a pessoa dirige-se à tal Loja do Cidadão, apenas para verificar que, tanto para renovar o BI (agora chama-se Cartão do Cidadão e contém uma série de trapalhadas que o magnífico governo português resolveu reunir num único e prático cartãozinho), como para a Segurança Social, estão mais de 1oo outras pessoas à sua frente. A pessoa pensa que talvez seja prematuro começar já a desanimar.
Assim, munida de toda a paciência que conseguiu arrancar do mais fundo do seu ser, a pessoa prepara-se, estóicamente, para a espera. Esta pessoa, que nem sequer é funcionária pública, embora receba o seu salário de uma instituição pública, encontra-se neste momento inteiramente dependente de funcionários públicos, e da sua boa-vontade e competência (ou falta dela).
Para aliviar a espera, a pessoa resolve ir dar umas voltas para matar o tempo. Não sem antes enviar dois SMS (um por cada serviço para o qual tirou senha, a 0,60€ + IVA por SMS) para ser avisada quando for necessário dirigir-se à área de atendimento. Digamos que a pessoa, para se entreter, resolve ir comprar umas sabrinas e umas meias de mousse à outra ponta de Lisboa. Nisto se passa cerca de uma hora e 15 minutos. A pessoa resolve voltar à Loja do Cidadão. E ainda não há SMS de volta.
A espera continua. A pessoa come um lanchinho que trouxe de casa e contava comer no trabalho. Finalmente, o SMS chega, avisando que faltam 15 senhas para a sua, e cerca de duas horas após ter tirado a sua senha, a pessoa é atendida na Segurança Social.
Suponhamos que essa pessoa é bolseira de investigação e que, como boa cidadã, resolve fazer os seus descontinhos para a Segurança Social. Suponhamos ainda que na instituição que lhe paga o salário, lhe disseram que para usufruir do Seguro Social Voluntário bastava dirigir-se à Segurança Social e apresentar uma simples declaração que essa mesma instituição lhe tinha passado. Agora vamos supor que nessa Fundação as pessoas não sabem informar os seus bolseiros. Vamos supor que há um funcionário da Segurança Social que esclarece que para ter direito a esse seguro (que, afinal de contas, não é mais que um seguro que qualquer pessoa que não trabalhe mas queira usufruir dos benefícios da Segurança Social pode solicitar), a pessoa terá que, para além de preencher um requerimento, apresentar um atestado médico que comprove a sua robustez física a aptidão para exercer uma profissão. Apesar de não estar a trabalhar. Isto porque, perante o estado português e para todos os efeitos, um bolseiro não é um trabalhador. Nada de muito novo para esta nossa pessoa, que está perfeitamente consciente do desprezo e da falta de respeito a que os bolseiros são votados neste país. Ainda assim, a pessoa não consegue impedir um nózinho na garganta ao constatar o facto que esta sociedade desvaloriza e ridiculariza o seu trabalho, e o de tantos outros como ela.
No meio de todas estas constatações e desilusões, suponhamos que o funcionário, que até era deveras simpático, compadecendo-se da injustiça da situação profissional (que, para todos efeitos, não o é) desta pessoa, ainda tenta encetar uma conversa, trazendo à baila as eras glaciais, os dinossauros, os crocodilos e a fauna portuguesa. Ora a pessoa, que por esta altura já está ligeiramente irritada, não está com grande cabeça para paleios, muito menos que tenham minimamente que ver com o seu trabalho (que não o é).

E assim termina o primeiro acto desta epopeia hipotética, restando apenas a esta eventual pessoa a certeza que terá que voltar, e voltar a perder mais umas duas horas nos balcões da Segurança Social, para, enfim, poder resolver a sua situação.

Para o segundo acto, a pessoa volta a dirigir-se ao departamento do Cartão do Cidadão (essa fantástica invenção), para uma espera que se afigura ainda mais assustadora. Suponhamos que a taxa de atendimento é de cerca de 20 pessoas por hora. A pessoa começa a pensar que desanimar talvez não seja, de todo, uma má ideia. Mas espera. E espera... E espera.
A pessoa tenta ler um livro (digamos que está a ler o "Diary" do Chuck Palahniuk), mas não se consegue concentrar. A pessoa tenta encontrar posição na cadeira (suponhamos que as cadeiras são muito desconfortáveis), mas não consegue. A pessoa bebe água, a pessoa vai à casa-de-banho, a pessoa fuma cigarros (isto supondo que a pessoa cumpre as suas necessidades fisiológicas básicas e que fuma). A pessoa vai dar uma volta para matar mais algum tempo, a pessoa fuma mais uns cigarros, a pessoa vai apanhar ar à rua. A pessoa volta a sentar-se numa cadeira. E espera. E espera... E derrete a esperar.
A pessoa dá consigo a bendizer o velhinho e sempre fiável Bilhete de Identidade, que foi irreverssivelmente substituído por esta merdice pró-choque tecnológico do Cartão de Cidadão, que ninguém sabe muito bem como se usa nem como se faz. Tudo a bem do atraso de vida, claro está. A pessoa imagina como seria entrar por ali adentro com uma AK-47 debaixo do braço. Ou com uma granada de mão. Ou com um colete de explosivos. A pessoa pondera aderir a um qualquer movimento ou facção terrorista. E a pessoa desespera.
É então que um raio de luz irrompe este dia negro, na forma da cara-metade desta pessoa, que lhe traz o almoço (digamos que lhe trouxe uma salada com frango, massa, alface, tomate e milho) e muito amor e carinho. A pessoa, agora nutrida, amada e acarinhada, sente-se consolada e significativamente mais feliz. A pessoa volta a acreditar que tudo irá correr bem, principalmente porque já só faltam três números para a sua senha.
E eis senão quando, sete horas após ter entrado na Loja do Cidadão, a pessoa finalmente é atendida. Apenas para mais uma desilusão. Suponhamos que a pessoa tinha ido fazer fotografias tipo-passe no dia anterior (já a prever esta situação), tinha gasto dinheiro, mas que as fotografias até tinham ficado jeitosinhas. Suponhamos agora que essas fotografias não serviram para absolutamente nada, porque agora é tudo digitalizado, e a fotografia a constar do cartão é tirada por uma engenhoca que os senhores criativos do funcionalismo público baptizaram, muito adequadamente, de "Quiosque". Suponhamos que essa engenhoca possui uma pequena câmara digital que tira as fotografias mais horrendas de que há memória. E que a desta pessoa se assemelha não ao seu rosto, mas sim ao de um Neandertal. Só para terminar, vamos também supor que esta máquina tira impressões digitais, mede alturas e digitaliza assinaturas. Agora vamos imaginar que a digitalização da assinatura desta pessoa é de tal forma fiel, que ela própria não se sabe se a irá conseguir 'falsificar' quando for altura de assinar algum documento importante. "Mas pronto", pensa esta nossa pessoa, cuja carteira acabou de ser aliviada de 12€ , "já está, e que se foda o resto!".

Conclusão: E para terminar o dia beleza, vamos supor que a instituição responsável pelo pagamento do salário desta pessoa não anda a cumprir prazos. Digamos que o ordenado desta pessoa era suposto pingar a dia 26 que, va lá, tudo bem, nesse mês 26 calhou num Domingo. Mas agora, mais de um dia depois, segunda-feira já quase a virar para terça, a pessoa continua com a sua conta bancária praticamente a zeros e com uma série de despesas para pagar.

Epílogo: E agora vamos supor que já se faz tarde e que essa pessoa tem que se ir deitar, porque amanhã é um novo dia - de trabalho (que não o é) - e o de hoje é para esquecer!

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